De onde vem esta história de 20 000 Espécies de Abelhas? É uma história em que estivesse a pensar há muito?
Sempre reflecti sobre identidade, corpo e género, bem como sobre relações familiares, tendo materializado essa reflexão do meu trabalho. Os meus filmes anteriores, abordaram questões recorrentes como: desde quando sabemos quem somos? Que relação existe entre a nossa noção de identidade e o nosso corpo? A auto-identidade é apenas uma experiência íntima e pessoal ou é afectada pelo olhar externo?

O que a levou a querer falar sobre a identidade trans? Sente-se, de alguma forma, ligada ao tema ou até agora foi algo que lhe foi externo?
Sempre me preocupei com a identidade de género. Sou a quinta de seis filhos, na sua maioria meninas. Sempre senti uma dissociação entre os papéis que me foram atribuídos em casa e o comportamento que era esperado de mim fora dela. Pratiquei natação dos 6 aos 13 anos. Treinava diariamente, competia na categoria feminina e equipava-me nos vestiários femininos. A diferença sexual e simbólica do meu corpo marcou a minha passagem da infância para a adolescência. Por gostar de desporto, passei a maior parte da minha infância rodeada de rapazes. Sentia-me mais à vontade com acção, competição, jogos… E, ao mesmo tempo, nunca me senti realmente incluída naquele grupo. Essa diferença acentuou-se ainda mais quando entrei na puberdade e o meu corpo se alterou. Esta história nasce da necessidade de questionar os limites do rígido sistema sexo-género. Este nega e castiga socialmente as zonas intermediárias que existem entre os dois extremos. Tal negação gerou e continua a gerar muito sofrimento. É um legado incómodo que é representado no filme pela figura do pai e o seu trabalho e pela forma como ele apreende os ideais masculinos e femininos. Também pode ser visto no legado da sua oficina, um legado do qual Anne, apesar de ser a personagem mais progressista do filme, não se quer livrar.

O filme não é apenas sobre a infância trans, pois também fala sobre muitos outros assuntos. Em particular, trata do peso das tradições familiares, sociais e culturais com as quais passamos a vida inteira a lidar para nos tornarmos indivíduos livres.
Essa é uma questão fundamental no filme. Daí haver um ponto de vista duplo no filme, apesar de muitas residências de argumento (writing labs) mo terem desaconselhado, dado que, de uma maneira geral, os dogmas da escrita do argumento nos obriguem a escolher apenas um. Há o ponto de vista da filha, mas também há o da mãe, que é a personagem com quem mais me identifico, tanto pela minha experiência pessoal como pela minha pertença àquela geração. O filme é a jornada comum das duas protagonistas. Para mim, a infância trans é apenas mais um aspecto da diversidade humana e das diferentes formas de ser e viver que existem no mundo. No contexto do filme, é a questão da infância trans que movimenta a família, transformando vínculos e trazendo à luz coisas escondidas, mas eu nunca pretendi fazer um filme que falasse apenas sobre esse assunto, em parte porque não sou uma pessoa trans, mas também porque não queria falar em nome dessa comunidade. Interessou-me abordar a questão da identidade de forma mais ampla e estudar como as relações familiares nos podem afectar na nossa jornada para a autodeterminação.

De onde vem a metáfora da apicultura e o que é que ela simboliza no filme?
Na colmeia, cada abelha tem um papel distinto e necessário ao funcionamento do grupo. No entanto, a colmeia é mais do que a soma dos seus indivíduos. É um organismo vivo por si só, e achei-o adequado no que toca ao tema do filme, pela tensão existente entre o indivíduo e a comunidade. A colmeia é regida por indivíduos interdependentes e, ao mesmo tempo, cada abelha desempenha nela um papel específico. Para mim, foi uma imagem adequada para falar sobre as relações familiares, tal como são retratadas no filme. Além disso, as abelhas e colmeias desempenham um importante papel social e espiritual na vida tradicional basca, cuja cultura eu também queria retratar. Na cultura basca, a abelha é considerada um animal sagrado. Em basco, o tratamento zu ou usted é usado para as referir com respeito.

O filme chega após um ano excepcional para o cinema espanhol. Sobretudo para muitas novas realizadoras, como Carla Simón (Alcarràs), Pilar Palomero (Las Niñas, La Maternal), Elena López Riera (El Agua) ou Alauda Ruiz de Azúa (Cinco Lobitos). Sente-se parte dessa geração de mulheres cineastas?
Sinto-me muito próxima das preocupações estéticas de todas essas realizadoras e dos temas que lhes interessam, já que temos praticamente a mesma idade. O que vivemos agora é resultado de um longo processo que decorre de um maior apoio institucional e de medidas correcionais. Tentou-se compensar uma assimetria histórica que existia há muito… E que ainda existe. Ter modelos históricos é muito importante, porque nos permite visualizarmo-nos a fazer o mesmo e faz-nos sentir legítimas enquanto cineastas. Ainda assim, estou ciente de que não se partiu do zero: sempre houve realizadoras no cinema espanhol, embora nem sempre as tenhamos defendido como mereciam. A nível pessoal, questiono a designação “(mulher) cineasta” porque me parece ser usado de forma algo limitadora ou redutora. Funciona muitas vezes como sinónimo de um cinema mais sensível, de um olhar intimista, de um tipo de cinema talvez menos pretensioso e também muitas vezes menos ambicioso em termos de orçamento. Este é um momento muito valioso e feliz para o cinema espanhol, e é – sem dúvida – um motivo para comemorar, mas não nos contentemos com este tipo de manchetes. Ainda não atingimos o cenário ideal. Ainda há muito trabalho a fazer.