A Tempo Inteiro começa por um som, o som da respiração profunda e adormecida de Julie, a sua personagem principal…
Quis revelar a personagem aos poucos, de dentro para fora, de forma macroscópica e sensorial, com essa respiração profunda e envolvente que nos anuncia que estaremos colados a ela ao longo de todo o filme. Estar o mais próximo possível da sua respiração e da textura da sua pele. Além disso, é a calmaria antes da tempestade. A Tempo Inteiro é todo um ímpeto e esta primeira cena precede o movimento. Estamos neste momento único em que Julie descansa, neste momento único e demasiado curto em que ela pode recarregar as baterias. Depois disso, nunca haverá trégua. Através do prisma desta mulher, sozinha com os seus filhos, questiono os nossos ritmos de vida e as nossas lutas diárias. Tal como Julie, moro no campo. Quis falar dos meus vizinhos e das pessoas que encontro diariamente no comboio, gente que decidiu morar longe da capital para ter mais qualidade de vida. É um equilíbrio difícil de atingir e nem todos conseguem alcançá-lo.

Escreveu A Tempo Inteiro para a Laure Calamy?
Quando escrevi o argumento, não pensei em ninguém em especial. Quando comecei a pensar em actrizes, o nome da Laure impôs-se. Ela é uma actriz extraordinária, tem um grande currículo em drama, tendo passado também pela comédia. Ela destaca-se. O aspecto cintilante que a Laure imprime aos seus papéis ajudou a equilibrar a personagem de Julie que, mesmo passando por um período difícil, deixa ver a luz da sua personagem. Na verdade, não ficamos a saber muito sobre esta mulher, apenas que ela vive no presente, com a ideia constante de assegurar o dia seguinte. Além disso, a Laure é uma actriz e uma mulher cheia de vida. Achei, por isso, interessante colocá-la no corpo daquela mulher que passa por um período muito caótico sintetizado pelos americanos na expressão “tempestade perfeita”: quando todos os problemas possíveis e imagináveis que é preciso resolver se acumulam num único momento.

O contexto social em que se inscreve o seu filme é fundamental…
Sim, A Tempo Inteiro decorre num grande movimento social à escala do país, propagado a todas as esferas de actividade. As coisas começam a descambar por todo o lado, um pouco como o que sucede à minha personagem. Quis que a luta individual e a colectiva vivessem em paralelo, que, aos poucos, se entendesse que estão ligadas, que contam a mesma história, que uma é consequência da outra. Julie vive num ângulo morto, pertence àquela categoria de trabalhadores, dos mais vulneráveis, que dificilmente podem fazer greve e que não se vêem representados. E lembrei-me das greves de Paris, em 1995, onde me impressionou o modo como parisienses e suburbanos se uniram e fizeram viver a cidade de forma diferente, indo a pé, pedindo boleia, entreajudando-se. Quis mostrar esse clima de luta diária e sobretudo essa solidariedade. E quis o acaso que, enquanto escrevia o argumento, estalasse o movimento dos coletes amarelos. Na região de Sens, onde moro, assisti às primeiras ocupações de rotundas. Senti que as coisas não estavam a correr bem e que a abordagem deles fazia sentido. Nesse movimento, havia muitas mulheres monoparentais que nenhuma entidade representa e não me espantou encontrá-las ali.

Paris é filmada de forma muito inusitada, cortante, metálica, todavia, é uma cidade essencialmente inanimada.
Na verdade, o espaço urbano que filmei não é propriamente Paris, poderia ser qualquer outra grande cidade. Inspirei-me na forma como Nova York foi filmada em certos filmes dos anos 70. Paris tem tonalidades cinzas e alaranjadas, mas decidi representá-la mais fria, mais crua. Isso corresponde bem ao estado de espírito de Julie, que se encontra em terreno hostil, mal põe os pés nesse território. Também explorei esse viés nas sequências no hotel. No início, essas cenas deviam ter cores mais variadas, diferindo consoante os quartos, mas também aí os tons frios acabaram por se impor. Foi uma forma de abalar esse local, a priori muito caloroso, do ponto de vista de quem lá trabalha.

A Tempo Inteiro é também filmar uma personagem sempre em movimento…
Ela é uma guerreira. Para ela, todos os meios são bons, inclusivamente, por vezes, chegar a um compromisso com a verdade. Julie é uma heroína do quotidiano que quis mostrar em todas as suas facetas. Vemo-la com os filhos, com os colegas, com os amigos, numa entrevista de trabalho. Ela não é sempre a mesma mulher, mas é o conjunto de todas aquelas mulheres que nos diz quem ela é. Tem os seus defeitos, às vezes, é a sua maior inimiga, a sua tenacidade chega a ser implacável. É, ao mesmo tempo, forte e falível. E a Laure é uma actriz muito física. Sentimos a sua experiência do palco de teatro no seu trabalho, ela sabe apropriar-se do espaço. Juntos, trabalhámos constantemente o ritmo dos seus movimentos, mas não só. O ritmo do filme exigia muito mais do que isso. O filme tem muitas cenas, a montagem é muito elíptica e a energia e a psicologia da personagem tiveram de bater certo com as sequências. Devido às suas lutas, Julie tem de se projectar constantemente no futuro, ela é uma jogadora de xadrez, muitas vezes está vários passos à frente.